Foto: Warner Bros/Coringa/Divulgação |
Já imaginou um filme de herói sem o herói? É o que vemos no filme Coringa (2019)! Durante cerca de duas horas de filme temos a oportunidade de observar a dramática vida de Arthur Fleck, interpretado por Joaquin Phoenix, com imagens chocantes e situações em que nos leva a refletir sobre loucura, preconceito, revolta social e violência gratuita.
Seguem-se nestas linhas um olhar psicológico do filme. Escrito à 3 mãos, de 3 psicólogas com referenciais de abordagens diferentes, buscando unirem seus conhecimentos a vontade de destrinchar esse personagem icônico da cultura pop.
É inegável a magnitude da produção cinematográfica. Pessoalmente, não é um filme para a família e, mesmo se configurando um “filme de super-herói para adultos”, digamos que é um drama pesado, denso e complexo. Arriscamos dizer que não é um filme para qualquer adulto, já que algumas cenas são difíceis de se assistir dada a violência mostrada em tela, ora física, ora psicológica.
Psicologicamente falando, algumas questões aparecem: Qual o papel da sociedade na construção de um ser malvado como o Coringa? Que influência a criação familiar tem na formação da personalidade de uma pessoa? Que visão a sociedade tem da loucura e da pessoa com transtornos mentais? Qual o espaço que uma pessoa com transtorno mental grave consegue ocupar na sociedade? O quanto sofre uma pessoa que não consegue se encaixar dentro do padrão de normalidade?
Ao tentar responder a primeira pergunta, esbarramos na questão da essência, da personalidade do indivíduo. Na verdade, o termo personalidade envolve vários conceitos que juntos formam a ideia de estruturação do sujeito, que permeia diversas instâncias, sendo desenvolvido inicialmente na relação do bebê com sua mãe, depois com o seu pai até se deparar com outras pessoas ao ser introduzido na sociedade.
Se pensarmos nos primeiros modelos de Arthur, já de início podemos dizer, há presença de um lar desestruturado. E a negligência na infância pode pré-dispor o desenvolvimento da criança, que cresce como uma percepção de realidade distorcida. Além disso, ao longo da trama ele vivência muitas situações sociais e políticas que reforçam este desamparo. Situações complexas que geram confusões mentais e prejudicam consideravelmente sua capacidade de adaptação ao meio.
No desenrolar da trama, Arthur começa a tomar consciência da sua história, até então desconhecida e inconsciente, potencializando o sentimento de angústia: Além de não conhecer seus pais biológicos, é tomado para criar por uma mãe sem condições de toma-lo como seu filho por ser diagnosticada com psicose delirante (desde a infância de Arthur), e precisou ser internada em um hospital psiquiátrico, não tendo capacidade de proporcionar os cuidados básicos e afetivos de que uma criança necessita. E, a única figura masculina presente na sua infância (namorado de sua mãe) os tratava com violência. Não havendo nenhum outro parente ou amigo próximo que pudesse ajudar a amenizar a situação
Podemos notar sempre presente um sentimento de fracasso. De desventuras em série, de que nada é tão ruim que não possa piorar. Ele passa por todos esses percalços sem demonstrar sofrimento, buscando ser bom mesmo quando o mundo é incompreensivo com ele. Como que condenado a não entrar em contato com suas emoções negativas, como a raiva, a tristeza, a dor, o ódio. Tornando qualquer possibilidade de expressão espontânea, como choro, impossível de ser vivida. Sempre preso a necessidade de ser bom, de agradar e de ser “resiliente” frente as porradas da vida, buscando estar sempre alegre e sorrindo. E essa impotência desperta, no caso de Arhur, uma resposta violenta.
Essas vivências geram no personagem uma desorganização interna tão grande e uma identidade frágil, possibilitando uma ruptura do psiquismo. E é exatamente nesta ruptura que aparece o Coringa. Com estrutura psicótica de personalidade, não tendo recursos para acabar com seus sofrimentos psíquicos, Arthur começa a atuar, encontrando uma identidade nova: Coringa. Através dela, consegue se tornar uma espécie de justiceiro que, deposita no mundo concreto e externo, todos os seus afetos através de atos infracionais. E, esta transformação em Coringa amplia a sua perda de contato com a realidade, não sabendo mais o que é real ou fantasia.
É ao se tornar o Coringa que Arthur consegue ser visto pelo outro, ser ouvido, ter poder e se sentir importante, valorizado e reconhecido. Durante o filme, há vários indícios de uma história de uma completa incompreensão, da sociedade como um todo em relação a tudo que foge à 'normalidade', a qualquer tipo de transtorno mental, do serviço de saúde básico, da família, do trabalho, Falas como "pensei por muito tempo que eu não existisse" demonstram que faltou amparo por parte da própria sociedade que apresenta uma estrutura falha para lidar com transtornos mentais os marginalizando, excluindo e tratando como incapazes.
Sem esperanças de ser ouvido, Coringa é um personagem que reivindica por amor e perde o seu único espaço de fala no escritório da assistente social, pois é erradicado pela negligência do investimento financeiro do governo com o intuito de diminuir gastos devido a situação econômica do país. Buscando através do caos e da mobilização da sociedade uma revolução, uma mudança e uma reparação, podemos entender claramente a situação psíquica de Coringa, ao acreditar que dessa forma erradicaria todos os seus problemas de forma adaptativa e saudável e conseguiria alcançar os seus direitos como cidadão. Porém, o vemos perder a noção de vida em sociedade e reduzir ainda mais seu contato com a realidade.
É importante entendermos que essa forma de lidar com os problemas é disfuncional, afinal, se o seu objetivo é viver em sociedade, em conjunto com outras pessoas onde cada um tem o seu papel e desempenha as suas funções, não será realizando atos infracionais que se chegará a ser ouvido, pelo contrário, será repelido e mais marginalizado. O ideal seria a própria sociedade entender a necessidade de incluir pessoas com transtornos mentais acolhendo-as e mostrando que mesmo com suas limitações elas podem fazer parte de uma comunidade, realizar trabalhos, serem remuneradas de forma justa, receberem os tratamentos psiquiátricos e psicológicos necessários visando sua qualidade de vida e sua produtividade.
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Ângela S. R. Guimarães reside em Brasília, é psicóloga clínica, neuropsicóloga e especialista em avaliação psicológica, CRP 01/17732. Atende adultos em seu consultório particular e na sua trajetória profissional tem interesse por psicanálise, psicopatologia e suas relações com a neurociência. Para entrar em contato e acompanhar seu trabalho, acesse:
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Cinthia Regina Moura Rebouças, psicóloga, CRP 23/001197, atende em consultório particular, adolescentes e adultos, com ênfase psicanalítica, em Palmas-TO. Possui MBA em Gestão de Pessoas (FGV), experiência como Docente do Curso de Gestão de Recursos Humanos, trabalha na interseção entre psicanálise e Trabalho. Tem experiência em trabalho com grupos, Avaliação Psicológica, na área Organizacional e na Condução de processos de Orientação Profissional.
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Sheila Francisca Machado reside em Brasília, é psicóloga clínica, especialista em psicologia clínica e especializada em avaliação psicológica, CRP 01/16880. Atende adolescentes e adultos na Clínica de Nutrição e Psicologia - CLINUP. Atua com a abordagem Análise do Comportamento.
Contato: sheila_machado_@hotmail.comClínica Clinup: clinup.blogspot.com Instagram: @empqnasdoses |
Excelente análise e muito boa iniciativa! Sabemos que as tramas do psiquismo são camufladas inteligentemente com vestes metafóricas, repletas de sentidos e significados criptografados e enigmáticos. Assim também os filmes, que na suas entrelinhas fazem a conexão com nossa essência, sensações e emoções, nos possibilita vivenciar algo comum a nossa natureza e realidade humana. Análises como essa trazem pro claro essas obscuridades de nossa natureza e proporcionam reflexões e descobertas interessantes sobre nós mesmos!! Sucesso no trabalho de vocês!!
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