Charlie se vê perdido após ser demitido do emprego e sua esposa Kim começar a trabalhar, precisando cuidar de seu filho Ben de 3 anos durante os momentos em que Kim está no trabalho. Assim começa o filme “A Creche do Papai” (2003). Inicialmente o cuidado durante o dia é visto como temporário enquanto Charlie não encontra outro emprego. Sócio, histórico e culturalmente o cuidado foi atrelado à esfera doméstica, e o papel de cuidador associado a mulher. O homem, ao longo do seu processo de tornar-se sujeito, não é incentivado a cuidar, mas ao se interessar pelo cuidado, ele sofre preconceito, o que gera sofrimentos, sentimento de inadequação e fracasso. Sendo assim, o homem em nossa cultura é incentivado a ver o cuidado com os filhos como algo temporário enquanto busca uma ocupação ou como uma ajuda momentânea a companheira.
Antes de começar a cuidar de Ben durante o dia, Charlie era um pai provedor e ocupado, que buscava estar presente na vida do filho, mas tinha dificuldade de ouvi-lo para entender o que ele queria. O estereótipo do "bom pai" é o de "provedor e ocupado, mas presente", pai este que tem seu relacionamento com o filho mediado pela companheira que narra ao filho as qualidades e o amor do pai ocupado em prover. Relacionamentos são criados em relação, assim, crianças na primeira infância ainda estão desenvolvendo linguagem e habilidades sociais. Entendê-las é habilidade a ser construída e requer disposição, paciência e principalmente relacionamento.
Nas primeiras semanas desempregado, por mais que o cuidado com o filho estivesse em dia, Charlie ainda estava focado em procurar uma oportunidade de emprego, estando ausente as necessidades sócio-afetivas-emocionais do filho, mesmo ainda presente fisicamente ao seu lado. Até quando a ideia da creche foi sugerida por uma mãe, amiga de parquinho, Charlie estava focado em ganhar dinheiro em casa, já que estava cuidando do filho. Na nossa sociedade uma das esferas de subjetivação masculina é a trabalhista, onde o dinheiro, o sucesso e o trabalho fora do âmbito doméstico são valorizados. Isto pressiona o homem a permanecer no "provedorismo paterno".
Para montar a creche, Charlie chama Phil, uma amigo/ex-colega de trabalho, que também foi demitido junto com ele, para juntos montarem a creche e ganhar dinheiro cuidando dos próprios filhos e dos filhos dos outros. Se Charlie estava por fora das necessidades de Ben, Phil estava por fora das capacidades de seu filho Max, não tendo noção do que ele dava conta de fazer sozinho, já que sempre deixou para a esposa os cuidados de higiene e em geral do filho. Mesmo assim, decidiu comprar a ideia com o amigo e abrir a creche. Em nossa cultura está naturalizada a ideia de que os homens não sabem cuidar, que essa é uma função da mulher e, por isso, muitos pais deixam o cuidado dos filhos sob responsabilidade de mulheres, mães, avós, babás ou professoras.
O slogan da creche? “Pais carinhosos, protetores e experientes, oferecendo excepcional serviço de creche a preços acessíveis”. O primeiro problema que esses “pais experientes” enfrentaram foi convencer as mães das crianças a acreditarem que eles eram capazes de cuidar de crianças. Um retrato do preconceito existente em relação a homens exercerem o cuidado com os filhos. É comum em muitas famílias vermos os pais se eximindo do cuidado com os filhos, com concordância das mães, pela noção cultural de que as mulheres são cuidadoras inatas e que os homens não sabem cuidar. Noção equivocada que sobrecarrega a mulher de trabalho, restringi o desenvolvimento da habilidade de cuidador no homem e, ao mesmo tempo, limita a criança no vínculo entre pai e filho.
Após vencer o desafio do preconceito, o próximo problema foi a descoberta de que cuidar do filho do outro é diferente de cuidar do próprio filho. As responsabilidades são diferentes e o ambiente de creche precisa de uma programação, um planejamento e estrutura adequada, fatores que eles perceberam no decorrer da primeira semana da creche recém-aberta. Para melhorar o trabalho na creche, recorrem a leitura de livros sobre “como ser mãe”. A creche do papai vai melhorando e se tornando um sucesso, mas Charlie ainda se vê fracassado por trabalhar com cuidado e sofre preconceito com o que faz para ter dinheiro. Destaca-se aqui a pouca representatividade de que homens, em especial héteros e em relacionamentos estáveis, tem de cuidador em manuais de autoajuda, obras literárias, cinema e quaisquer outros espaços. Na atualidade, observa-se um aumento de influenciadores que representam e defendem a paternidade ativa. Mas, apesar disso, eles ainda são um número pouco expressivo, sofrendo preconceito por parte de outros homens, que se consideram mais machos por não estarem em posição ativa de cuidado, e de algumas mulheres, que temem perder uma posição de suposta soberania de cuidar.
Charlie foi se descobrindo cuidador e se percebendo trabalhando com as crianças. Começou a ver o negócio com possibilidades de expansão e se deparou com o mais importante, aquilo que lhe faz melhorar enquanto o tio da creche e como pai, que crianças também querem ser ouvidas e entendidas, bem como que a melhor forma de conseguir isso é se relacionando com elas, criando vínculo, conversando e tentando entender o que elas querem. É nesse relacionamento com o próprio filho e no cuidado com o filho dos outros que Charlie aprende o que é uma paternidade ativa, que cuidar do filho é muito mais do que apenas “ajudar” a esposa a olhar a criança. Portanto, descobre que ser responsável pelo desenvolvimento de uma criança requer interesse e disposição para aprender e atender suas necessidades.
Cuidar é uma habilidade apreendida e não é restrita a um gênero. Entretanto, o papel de cuidador é desafiador, desgastante e ainda tem pouco, ou nenhum, reconhecimento na nossa sociedade, mesmo sendo um papel social vital. Tanto os pais quanto as mães podem ser cuidadores. Essa divisão de tarefas agrega qualidade de vida à dinâmica familiar que tem sua carga de trabalho mais igualitária, tem seus membros mais próximos, crianças com referências mais diversas e mais possibilidades de representação, além de trazer possibilidade de um futuro mais justo. Ser cuidador não precisa ser solitário e nem significa abrir mão totalmente de uma carreira ou profissão. Significa ser presente na vida dos filhos em cada fase da vida, dando a eles tempo de qualidade. Vale ressaltar ainda que a valorização e a noção ampla sobre os papéis paterno e materno começam em casa. Ambos os pais são exemplos de como serem cuidadores para seus próprios filhos.
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Alyne Farias Moreira, brasiliense do quadradinho, mas refugiada entre a beira do Araguaia e a sombra da Serra Azul. Mãe da Cora Linda, psicóloga, CRP 18/02963, equoterapeuta, professora e palestrante. Apaixonada pelo desenvolvimento humano e por psicanálise. Contato: (66) 99224-9686 Instagram: @vir_a_ser_Alyne |
Sheila Francisca Machado reside em Brasília, é psicóloga clínica, especialista em psicologia clínica e especializada em avaliação psicológica, CRP 01/16880. Atende adolescentes e adultos na Clínica de Nutrição e Psicologia - CLINUP. Atua com a abordagem Análise do Comportamento. Contato: sheila_machado_@hotmail.com Clínica Clinup: clinup.blogspot.com Instagram: @empqnasdoses Facebook: facebook.com/daoplaypsi |
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