Tully: precisamos falar sobre sobrecarga materna

4 de agosto de 2020


Foto: Diamond Films / Tully / Divulgação

A mulher é uma ilha, um guarda-sol... Qual símbolo representa a mulher moderna? Já ouvi se referirem a ela como uma loba, mas sinto que tal animal padeceria se exposto a mesma realidade de expectativas sociais impostas. Peninha das mulheres? De forma alguma, buscando apenas entender o fenômeno Tully e o que ele quer nos ensinar. 

Não é que a mulher seja obrigada "à força" a cumprir com as expectativas. A verdade é que ela tem opção. Porém, na era do "basta querer e se esforçar", aqueles que não alcançam os resultados são automaticamente classificados como "perdedores" ou "fracos". Então, necessidades vão sendo criadas. As circunstâncias parecem ir de encontro às necessidades e tornam imprescindível a busca por dar conta de tudo. No filme vimos que ela sente até a cobrança de passar tranquilidade para o marido por conta das atividades profissionais. 

Em "Tully" (2018), acompanhamos Marlo, uma boa mãe que se esforça para cuidar, manter a rotina e atender as necessidades dos dois filhos. Como esposa, pensa em manter a intimidade presente entre o casal. Quando há problemas, ela busca resolver e cumprir todas as suas obrigações do papel de mãe e esposa. E ela demonstra conseguir, apenas uma tarefa mostra-se negligenciada: cuidar de Marlo.  

Assim, Marlo cuida de todo mundo e nem sequer pensa que faltam coisas para si. Não há tempo para isso. Nem para tomar consciência de que ali existe uma pessoa com necessidades próprias.  Com a proximidade da chegada de mais um bebê, o irmão dela sugere que o casal faça como ele e a esposa e contrate uma babá para cuidar do recém-nascido durante a noite. Dessa forma, a mamãe poderia descansar e recarregar as energias.  

A babá, Tully, entra em cena, deixando claro que o bebê não é o único ser em estado de fragilidade por ali. A ebulição de hormônios, somada à exaustão física e psicológica, tiram qualquer ser humano do eixo. Tully surge como a tábua de salvação que ajuda a retirar o peso dos ombros de Marlo.  

Curioso como no filme, apenas uma mulher (Tully) é capaz de dar o apoio que a outra necessita (Marlo). Retratando como na nossa sociedade, as mulheres não são criadas para estarem só. É papel da mulher estar sempre se pondo para o outro. Põe-se mãe para o filho, põe-se esposa para o marido e, na maioria das vezes, põe-se no mercado profissional. Essa noção faz com que elas (nós) não tenham tempo para ficar só e perceberem quando as coisas estão saindo do controle. Pois ao agirmos no automático, as emoções não são elaboradas, não há tempo para processar os acontecimentos, os pensamentos, os sentimentos. A mulher é um ser em constante relação com o outro e quando ela não está nesta relação, ela se sente muito sozinha. 

Por ser a única compreendendo o que está acontecendo com Marlo, Tully também é a única capaz de a confortar, tornando-se peça fundamental na vida da família, extrapolando seu papel de "babá". Desta forma, Marlo consegue recuperar um pouco de energia e voltar a entrar em contato com seus desejos e necessidades, recuperando assim a tranquilidade e o controle. 

É interessante observar como Drew, apesar de ser um marido amoroso e dedicado em diversos aspectos, não enxerga o quanto sua esposa precisa dele. É muito mais cômodo simplesmente achar que tem coisas que só uma mãe pode fazer por um bebê. O que parece não passar pela cabeça dele é que Marlo, muito mais do que de ajuda, carece de cuidados. Gerando assim, um desamparo duplo. 

As pessoas costumam dizer que os palpites triplicam com a chegada dos filhos e é exatamente isso que o filme mostra. As comparações aparecem quando ela vai jantar com a família na casa do seu irmão e encontra um ambiente perfeitamente organizado. No filme, ao se comparar com outras pessoas, Marlo começa a se cobrar cada vez mais para ter sucesso em tudo o que faz. Assim, a casa fica arrumada, o jantar se torna mais saudável e até os atritos do casamento melhoram, mas isso tem um custo muito alto. 

O resultado é uma extrema dependência do "efeito Tully", ao final, ao mesmo tempo em que, quando não há uma real divisão das tarefas, o custo da liberdade de um é a escravidão do outro. Escravidão parece uma palavra exagerada, dramática? Nos tornamos escravos daquilo que nos controla mesmo que seja nosso querer.  

É aí que entra a reflexão sobre a história de Marlo. Visivelmente ela queria fazer parte e dar conta do projeto "família perfeita" e não a ouvimos pedir ajuda. Afinal, ao encarrar como sua a responsabilidade de "fazer dar certo", ela não deu ao outro a oportunidade de ajudar. Ao mesmo tempo que se super-responsabiliza, desresponsabiliza o outro. Demonstrando que é preciso, então, melhorar a relação consigo mesma. Se pensarmos bem, até que ponto a mãe precisa ser a responsável pelo afeto enquanto a naturalização da ausência paterna é como as coisas realmente devem ser? 

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Cinthia Regina Moura Rebouças, psicóloga, CRP 23/001197, atende em consultório particular, adolescentes e adultos, com ênfase psicanalítica, em Palmas-TO. Possui MBA em Gestão de Pessoas (FGV), experiência como Docente do Curso de Gestão de Recursos Humanos, trabalha na interseção entre psicanálise e Trabalho. Tem experiência em trabalho com grupos, Avaliação Psicológica, na área Organizacional e na Condução de processos de Orientação Profissional.
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