Os Batutinhas (1994) - entretenimento e tecnologia de gênero?

23 de junho de 2020

 
Foto: CIC / Os Batutinhas / Divulgação
 
Tornar-se homem ou tornar-se mulher é uma construção sócio-histórica-cultural criada, repassada e mantida por tecnologias sociais de gênero como cinema, televisão, jogos, piadas, xingamentos, “memes” e tantos outros. Essa construção social de homem e mulher ocorre na atualidade ocidental alinhada a uma cultura patriarcal e machista que dita valores e ideias que, de tão enraizadas culturalmente, são tidas como naturalizadas e por isso aceitas, apesar de serem socialmente construídas. O clássico da sessão da tarde nos anos 90 “Os batutinhas” (1994) conta sobre o “Clube de machos anti-mulheres”, que se sente traído quando um de seus membros, Alfafa, se apaixona por uma garota, Darla. 

Na reunião do “Clube de machos anti-mulheres", podemos notar, claramente, os "machos" se reunindo para sustentarem o que é necessário para ser “macho”: não podem expressar sentimentos, porque sentimentos são relacionados ao feminino, a fraqueza; devem exibir suas conquistas frente aos outros “machos”; e qualquer relação com fraqueza é punido, assim como qualquer relação com força é exaltada; se relacionar com meninas é extremamente proibido, assim como se apaixonar. É possível observar o reforço de uma cultura misógina, tanto no nome do clube como nos ideais do “Clube de machos anti-mulheres”. Esse tipo de reunião de homens que sustenta o estereótipo "macho" é uma prática social corriqueira em rodas masculinas presenciais e virtuais. 

Os garotos escutam Alfafa dizer para Darla “Eu sou um macho sensível, eu gosto de ternura, afeto, amor e carinho e estou em contato com o meu lado feminino”. Diante desta declaração os meninos decidem que precisam salvar o amigo, e aprontam para acabar com o encontro de Alfafa e Darla às escondidas no clube. Podemos observar mais uma vez o reforço de uma cultura misógina na ideia de ter que salvar o amigo, que está apaixonado por uma garota e se declara macho sensível. A antifeminilidade é uma característica essencial à construção cultural da masculinidade no Ocidente. Os garotos aprendem desde cedo que devem ser machos e não devem ser iguais as mulheres, pelo contrário devem odiar as mulheres

O resultado do encontro somado às traquinagens dos amigos e a tentativa deles de flagrarem o casal no clubinho é um incêndio que destrói a sede do clube. Após o incêndio os meninos promovem um julgamento, sendo o juiz o próprio presidente do “Clube dos machos anti-mulheres”. Fora da telinha também temos essa lógica imperando, os homens têm suas atitudes constantemente julgadas pelos seus iguais. 

No julgamento Alfafa tem direito a se explicar “eu não sabia que gostar de uma garota podia levar a tudo isso, eu decepcionei meus amigos, e destruí o clube, e decepcionei o meu melhor amigo”. Inicialmente Alfafa é condenado a execução, mas depois é condenado a condicional onde terá que cuidar do carro do clube dia e noite até a corrida, e não poderá falar, pensar ou ver Darla. A prática de julgamentos e penalidades entre os homens é muito comum em nossa sociedade, os homens considerados “mais machos” pelos iguais lucram de benefícios e de maior poder de julgamento, enquanto aqueles que não atingem as expectativas dos demais recebem a punição de serem constantemente comparados às mulheres. 

Na sequência, Darla vai se apresentar no recital de ballet e, antes de entrar no palco, ela e as demais “fadas açucaradas” têm um diálogo com duas “meninas novas”, que na verdade são Alfafa e Batatinha (presidente do “Clube de machos anti-mulheres”). Nessa conversa as meninas falam de namorados, e fica claro como é importante para as meninas ter um namorado, demonstrando como o romance é valorizado pelo grupo de garotas. Alfafa demonstra satisfação ao ser elogiado pelo grupo de meninas, enquanto Batatinha se sente enojado a cada elogio feito ao amigo. As mulheres desde cedo são educadas para o amor e o romance e, apesar de na infância existir conflitos entre meninas e meninos, ter um namorado, protagonizar romance fornece status entre as meninas. 

Após a cena do recital, Batatinha, que está disfarçado de menina, se aproveita disto para enganar, através da sedução, dois meninos maiores que querem bater nele e em Alfafa. Nessa cena fica claro uma cultura de que a mulher utiliza de seu corpo e sedução para enganar os homens e mesmo o macho, que odeia mulheres, tem consciência desse poder feminino. Esse pensamento é naturalizado em nossa cultura e reforça ideia da mulher como objeto. 

Os garotos do clube se orgulham de sua “honra e invencibilidade” materializados no carro, orgulho do clube, e nos troféus de corrida que já ganharam com ele. Após o carro ser roubado, os melhores amigos Alfafa e Batatinha desabafam suas insatisfações um com o outro e brigam, mas depois se perdoam e unem os garotos novamente para construírem um novo carrinho e participar da corrida.  Os relacionamentos entre homens em nossa sociedade, assim como o dos meninos no filme, são marcados por um senso de fraternidade, onde eles se apoiam para garantir a honra e a virilidade dos amigos, mas entre eles, aqueles que não seguem o juramento dos “machos” sofrem coação e retaliação.

Ao longo do filme nas cenas que mostram reuniões de meninas, nota-se um grupo com ausência de estrutura e organização, supervalorização do romantismo, da “fofoca entre amigas”, e da mulher sendo atraída por bens materiais (carros, empresas, presentes). Esse é o estereótipo associado as mulheres no mundo ocidental, que é ditado e reforçado pelos homens, mas também reforçado por mulheres, que mesmo que não queiram ser associadas a tal estereótipo fiscalizam e julgam as outras a luz dele. 

O filme traz uma mensagem: a importância da quebra desses padrões “macho e mulherzinha”. O filme também mostra alguns destes sendo quebrados. Contudo, mesmo quando o clubinho passa a aceitar mulheres ele continua sendo o “Clube de machos anti-mulheres”, mas ganha um complemento “bem-vindas, mulheres”, deixando claro que apesar das mulheres serem bem-vindas o ódio a elas permanece na essência do grupo. É importante destacar também que essa cena é marcada por várias trocas de beijos e abraços entre as crianças de sexo oposto, o que pode ser lido como uma sexualização dessas relações. E é seguindo esse modelo que temos a entrada das mulheres nas rodas masculinas, a mulher é bem-vinda a esses espaços como objeto sexual, mas o ódio ao que elas são e representam em outras esferas permanece, e dessa forma elas são valorizadas sexualmente e o resto é ignorado.

Tendo em vista que os comportamentos tendem a ser selecionados pelas consequências que eles causam, sair desses papéis de “homem e mulher” se torna difícil: caso não nos adequemos ao esperado por uma pessoa ou grupo de pessoas, demonstrando os comportamentos desejáveis apenas naquele contexto, seremos punidos de alguma forma. No filme, isso fica marcado quando Alfafa quer se manter no “clube de machos anti-mulheres”, não se expressando lá dentro sobre sua paixão, mas ao mesmo tempo, tenta conquistar Darla, demonstrando seus sentimentos por ela. Veja como são dois contextos diferentes, duas formas de se comportar por desejar ou esperar ser aceito nos dois contextos.

No cotidiano, percebemos que muitos “machos” não conseguem essa dualidade mostrada nos filmes. Por não serem ensinados a descrever suas emoções e a lidar com elas, se tornam adultos com dificuldades de entenderem o que acontece consigo e de serem empáticos. Muitas vezes, perdem relações importantes como amizades, cônjuges ou filhos, por não saberem expressar o que sentem. E ao procurarem amigos “machos” para ajudá-los, acabam sendo menosprezados por sentir ou chorar, ou seja, por estar demonstrando o que foi ensinado como fraqueza.

A nossa sociedade clama por saúde mental, vivemos uma realidade de adoecimento psíquico e social intenso, muitos desses com suas raízes em estereótipos de gênero, pois o ser humano é muito mais complexo do que limita tais estereótipos. O ser humano é por essência espontâneo, mas a sociedade poda a expressão dessa característica para encaixa-lo em padrões, a expressão dos nossos sentimentos e a vivência da nossa espontaneidade está intimamente ligada a saúde mental. Precisamos nos reconectar com nossa essência e permitir que nossas crianças se desenvolvam de maneira singular, sem pressão para se encaixar em estereótipos.


*Esse texto foi embasado em discussões sobre gênero levantadas pela doutora Valeska Zanello, (a) no seu livro Saúde Mental, Gênero e Dispositivos: Cultura e Processos de Subjetivação. 1. ed. Curitiba: Appris, 2018, (b) e no Minicurso: Saúde mental, gênero e dispositivos ministrado por ela em abril de 2020 em sua página do Instagram:  @zanellovaleska e disponível para acesso público em seu canal do Youtube: Valeska Zanello

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Alyne Farias Moreira, brasiliense do quadradinho, mas refugiada entre a beira do Araguaia e a sombra da Serra Azul. Mãe da Cora Linda, psicóloga, CRP 18/02963, equoterapeuta, professora e palestrante. Apaixonada pelo desenvolvimento humano e por psicanálise.  
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Gustavo Carvalho, Psicólogo (CRP 01/15682). Trabalha com atendimento presencial e online de adolescentes, adultos, casais e atendimento familiar.
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