Meu Pai e os papéis de cuidado e de cuidador

4 de junho de 2021

 

Foto: California Filmes / Meu Pai / Divulgação.

Meu Pai (2020) é um filme que nos traz duas perspectivas ao mesmo tempo, vemos Anthony, um senhor de 81 anos, convivendo com os sinais de sua demência e Anne, sua filha, tentando encontrar a melhor forma para cuidar dele. Nos primeiros minutos do filme conhecemos os dois quando Anthony coloca mais uma cuidadora para correr de sua casa e Anne informa que irá se mudar para Paris e que para ele continuar em seu apartamento em Londres precisará aceitar um novo cuidador. 

A partir daí vemos acontecimentos passados e presentes se misturando. Anthony nem sempre reconhece a filha, o lugar em que está e constantemente pergunta pela filha mais nova que diz ter tempo que não a vê. Por outro lado, Anne se sente triste quando o pai não a reconhece, pela forma agressiva que as vezes ele trata ela e outras pessoas, e por não saber mais se ainda dá conta de cuidar dele em casa ou se dá o braço a torcer a recomendação médica e coloca ele em uma casa de repouso.

Anthony não quer deixar seu apartamento, que ele comprou a cerca de 30 anos, e sente falta de itens que não estão mais lá ou da decoração diferente que encontra na casa da filha quando passa a morar com ela. O esposo de Anne até tenta ser compreensivo com ela, mas tem dificuldade de lidar com o sogro que se fixa em detalhes aparentemente irrelevantes, frequentemente esquece quem ele é ou o confunde com o ex-esposo da filha.

A casa da filha parece girar sua rotina de acordo com as necessidades de cuidado com o pai. Durante o dia Anthony fica com a cuidadora, mas a noite a responsabilidade do cuidado com ele é de Anne, que acaba vivendo para trabalhar e cuidar do pai. Por conta da demência, que no filme não é dito qual o diagnóstico específico, Anthony em alguns momentos acaba sendo agressivo na forma de falar com Anne e tem dificuldade de reconhecer, na maior parte do tempo, o que a filha faz por ele.

Apesar da confusão mental, Anthony ainda consegue ter bons momentos, mesmo que raros, com a filha. Ele valoriza bastante o tempo e acaba fixado em seu relógio, que vive guardando e esquecendo que guardou. Fica achando que alguém roubou seu relógio, culpa as cuidadoras. Se alguém o acusa de ter esquecido que guardou o relógio, fica com raiva. Ele sempre teve uma boa memória, como poderia agora estar esquecendo de tudo? Ainda mais de seu precioso relógio?

A situação que os dois vivem é complicada para ambos os lados. Para quem está sendo cuidado é difícil entender que precisa desses cuidados. Para alguém que sempre foi ativo e independente, com uma boa memória, é difícil não se lembrar e não se vê capaz de pequenas e simples atividades. O tempo que tanto era valorizado, é um sofrimento não conseguir mais acompanhar, perdido se é manhã ou se é noite. É difícil esquecer pessoas queridas, ver rostos estranhos quando esperava ver alguém conhecido. Ainda é complicado estar fixado em momentos do passado como se tivessem acontecido agora a pouco. A perda da autonomia e do direito de fazer as próprias escolhas é sofrido.

Para quem é o cuidador, há várias emoções e sentimentos misturados em acompanhar quem precisa de cuidados. A pessoa querida começa a apresentar um comportamento diferente e a contar repetidamente histórias do passado ou que nunca aconteceram. As vezes se vê precisando de dar cuidados básicos, como ajudar a trocar de roupas, convencer a tomar a medicação, explicar para a pessoa que ela já comeu, só que esqueceu, entre tantos outros que vão sendo necessários à medida que quem precisa de cuidados vai diminuindo suas capacidades. 

É comum o cuidador sentir cansaço, tristeza, frustração, impaciência, raiva, pena, impotência, medo do por vir e de não ser capaz de passar pelos desafios. A pessoa que o cuidador conheceu sua vida toda não é mais a mesma. Dependendo do quão comprometida já está, as vezes se torna até difícil para o cuidador olhar e reconhecer o ente querido como ainda sendo o dono daquele corpo.

É nessa mistura de sensações que vemos Anne confrontando suas limitações em relação ao cuidado com o pai, sendo levada a ter que tomar a difícil decisão de onde deixa-lo. Seria deixar o pai morar no próprio apartamento que comprou há 30 anos? Teria ela condições de leva-lo para morar permanentemente com ela? Será que a médica estava certa em recomendar a casa de repouso? O que seria o certo enquanto filha que se preocupa com o pai? Que culpa irá carregar pela decisão que tomar? Decisão difícil que não cabe julgamento de ninguém, nem da própria Anne. Afinal, o cuidador está dando o seu melhor dentro de suas próprias limitações e, no caso do filme, Anne aparece como a única pessoa na rede de apoio de Anthony, não tendo com quem dividir os cuidados a não ser profissionais cuidadores.

A situação em que Anthony e Anne se encontram é desafiadora e necessita de muita compreensão e empatia da parte dos que convivem com eles. A vida de quem precisa de cuidados e de quem é cuidador tem vários desafios e emoções envolvidas nas nuances do dia a dia. Aceitar que precisa de cuidados é difícil, assim como aceitar a posição de cuidador tem seu lado bonito e seu lado cansativo e de conflitos. Ambos os papéis exigem a necessidade de cuidados com a saúde, para o cuidador ter saúde e para quem necessita de cuidados ter qualidade de vida dentro do que ainda tem condições de viver.

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Sheila Francisca Machado reside em Brasília, é psicóloga clínica, especialista em psicologia clínica e especializada em avaliação psicológica, CRP 01/16880. Atende adolescentes e adultos na Clínica de Nutrição e Psicologia - CLINUP. Atua com a abordagem Análise do Comportamento.
Contato: sheila_machado_@hotmail.com
Clínica Clinupclinup.blogspot.com
Instagram@empqnasdoses

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