Destemida – refletindo sobre abandono paterno

6 de agosto de 2021

 

Foto: Netflix / Destemida / Divulgação.

Olo e Martha tem muito mais em comum do que imaginam. A voz de ambos tem o poder para percorrer o país, alcançar a fama. Ambos têm carisma e capacidade para conquistar o público. A diferença é que Olo está travado na carreira, precisando encontrar seu próximo hit, enquanto a carreira de sua filha Martha está prestes a começar. Vemos esse encontro acontecer em "Destemida" (2020). 

Olo é um cantor que abandonou a namorada grávida para correr atrás de seu sonho na música. 18 anos depois, seu hit “Escuridão da Noite” é cantado em todos os cantos. Por onde passa é aclamado, e, atualmente, é jurado em um programa de auditório que está em busca do próximo cantor ou cantora de sucesso, o show de talentos “Corrida Musical”, onde ou você canta bem e vai para a próxima fase, ou você recebe um balde de água fria, literalmente, e volta para casa.

A primeira etapa é de cidade em cidade e começamos o filme com ele sabendo que a próxima cidade é Rosalin, cidade natal de Olo, lugar onde ele deixou para traz sua possível família. Olo não parece nada satisfeito em voltar para Rosalin para etapa do programa. Parece inquieto e preocupado, como se a qualquer momento fosse encontrar o fantasma de seu passado. 

Sua filha Martha nunca conheceu o pai, não recebeu qualquer tipo de suporte dele, sendo criada pela mãe e pela avó. Acabou sendo incentivada por sua mãe a ir até o local das audições para tentar ver o pai pessoalmente pela primeira vez. Mas Olo quer esquecer o passado. Ao esbarrar no corredor das audições com a mãe de Martha diz não a reconhecer, o que deixa Martha furiosa. 

Martha ao se encontrar na frente dos jurados decide agredir verbalmente Olo e lhe jogar um copo de água na cara, o que foi visto como ousadia e fonte de sucesso pelos produtores do show de talentos, que decidiram aprová-la para a próxima etapa, apesar de Martha estar recebendo comentários de ódio nas redes sociais por ter atacado gratuitamente o grande astro da música Olo.

Por ter tentado esquecer o passado, Olo tinha marcas em sua história que doíam mais do que ele conseguia admitir. Estava tão preocupado com seus próprios sentimentos e com seus arrependimentos que não conseguia enxergar na sua frente as marcas que deixou em Martha. Só queria não precisar revê-la, rever sua ex e sua antiga cidade. Estava preocupado em deixar seu passado mais uma vez para traz e viver seu presente, sendo amado por seus fãs e tendo uma namorada que lhe ajudava a alimentar o ego. 

Já Martha estava decepcionada com o primeiro encontro com o pai, estava com raiva e se sentindo rejeitada. Havia imaginado como seria o pai, mas a realidade sobre quem ele era lhe frustrava. As expectativas não corresponderam a realidade e ela se via sozinha e incompreendida.

Bem, com o convite para ir para a próxima etapa, Martha decide ir ao show para ofender novamente o pai Olo. Ao chegar na frente das câmeras ao vivo, travou, não conseguiu dizer o que queria. O silêncio do momento foi rompido por Olo que decidiu retribuir as ofensas gratuitas que recebeu na audição na esperança dela ir embora e ele não precisa olhar novamente para seu passado. Sem conseguir falar, Martha começa a cantar seus sentimentos, ganhando a plateia. A partir daí vemos semana a semana, Olo tentando eliminar Martha para deixar o passado no passado e Martha aproveitando para a cada apresentação cantar uma música direcionada a seu pai, que estava ali, diante dela, durante os poucos minutos em que ela era uma candidata do show de talentos.

Porém, a fama instantânea tem um preço caro, Olo sabe bem disso. Martha começa a ter que administrar a fama, os seguidores, os fãs, as pessoas que se aproxima para se aproveitar de sua imagem, e acaba se afastando da família e dos amigos verdadeiros. Parece que pai e filha eram mais parecidos do que imaginavam e Martha estava seguindo os passos que Olo queria fingir que nunca existiram em sua vida. 

Olo, percebendo onde Martha estava se metendo, ficava cada vez mais incomodado e começou a falar com ela como um pai, só que Martha não estava mais querendo ouvir a ninguém. O caminho para os desejos de ambos se alinharem era longo, com algumas barreiras no caminho e necessitava passar pela superação de muita coisa. Martha precisaria superar a rejeição, perdoar o pai e aceitar que não era capaz de mudar Olo. Enquanto que Olo precisava superar seus arrependimentos do passado e escolher se queria mudar. Porém, são sentimentos difíceis de serem superados, pois são feridas emocionais que doem cada vez que se tenta mexer e por isso muitos preferem fugir.

Os erros, sejam do passado ou do presente, constituem quem nós somos, além de poderem ser a causa de traumas e arrependimentos. Há muitos casos como o de Martha de abandono paterno, em que o pai as vezes está mais próximo do que se imagina, em que tudo que a pessoa quer é uma convivência afetiva. 

Contudo, o medo de exercer a paternidade, de não ser bom o bastante e/ou de não ser um homem admirável para os filhos faz muitos se afastarem desse papel. Dúvidas podem surgir, como: “Terei que abrir mão de algum sonho?”, “Será que estou pronto para ser pai?” ou “Será que consigo conciliar meus planos com os cuidados da criança?”. Esses receios podem afastar muitos de cumprir esse papel na vida de outra pessoa.

Há homens buscam resolver seus arrependimentos focando na carreia e deixando a família de lado. Uma decisão que marca a todos. E se a escolha tivesse sido diferente? Se optasse por criar e manter o vínculo pai/filho(a)? O arrependimento desse "e se" traz medos e inseguranças, o que dificulta uma reaproximação. Enquanto isso, quem foi abandonado se questiona sobre o que fez para merecer o abandono, o que poderia ter feito para conquistar a presença e o amor do pai, o que tem de errado para que o pai não lhe quisesse. Filhos são uma grande responsabilidade, e a maior cobrança em cima dos pais é de si próprios.

Há vários fatores que podem levar a decisão de se abster do papel de cuidado, assim como há marcas que essa abstenção deixa em quem foi abandonado. Lembrando que exercer o papel de cuidado vai além de estar de corpo presente, é se envolver, orientar, atender as necessidades, negar alguns pedidos, é educar para poder sentir que fez o melhor que podia, mesmo que não tenha sido perfeito. Quem sabe Martha possa se abrir para dar uma segunda chance para o pai? O primeiro passo para saber essa resposta dependeria apenas de Olo decidir assumir esse papel e abrir espaço para a filha em sua vida. 

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Sheila Francisca Machado reside em Brasília, é psicóloga clínica, especialista em psicologia clínica e especializada em avaliação psicológica, CRP 01/16880. Atende adolescentes e adultos na Clínica de Nutrição e Psicologia - CLINUP. Atua com a abordagem Análise do Comportamento.
Contato: sheila_machado_@hotmail.com
Clínica Clinupclinup.blogspot.com
Instagram@empqnasdoses

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