O sabor do preconceito em “Chocolate” (2000)

7 de julho de 2020


Foto: Imagem Filmes / Miramax / Chocolate / Divulgação

Para quem gosta de chocolate, assistir ao filme “Chocolate” (2000) é um prato cheio para salivar e pensar no quão saborosos são cada um dos doces que Vianne Rocher vende em sua chocolateria, que parece tão cheia de magia e encanto. Contudo, o filme não se resume aos sabores que são criados na nossa imaginação. Vianne, uma mulher solteira, mãe de uma menina de 6 anos de idade chamada Anouk, que a acompanha em suas mudanças de cidade, é uma andarilha que vai de cidade em cidade levar os encantos e remédios do cacau.

Ao chegar em uma tranquila vila francesa, em 1959, começa a se organizar para abrir a chocolateria Maya em plena época da quaresma, o que causa certa revolta no Conde de Reynaud, prefeito do local. A pequena vila fictícia, que fica às margens do rio Tannes, é uma vila conservadora, com um rígido controle social entre seus habitantes, em que quem não se adequa as normas sociais é marginalizado e excluído. O Conde é a figura que personifica o controle social na cidade. Ele, sempre rígido, controla seus habitantes através do poder político, do status social e através da manipulação dos dogmas religiosos de forma a favorecer as regras da ordem social vigente e justificar, cultivar, os preconceitos seus e da comunidade daquela vila.

A vila parece bem habituada a forma do Conde de governar, sendo os próprios cidadãos agentes perpetuadores do controle social que ele dita, baseando-se no que os antecessores e familiares do Conde lhe ensinaram sobre o dever de se viver. Assim, as pessoas da cidade vivem em constante vigilância, com medo de ser o próximo excluído caso seja pego andando fora da cartilha social. A fofoca é muitas vezes a arma de delação usada por aqueles que pegam alguém agindo fora do que deveria ser.

Porém, enquanto andarilha, Vianne desconhece essas normas e vive pelo que foi passado pelos seus ancestrais, uma vida que flui com o soprar do vento, o que para a cidade é visto como uma afronta ao controle social, e ela vista como uma pagã por não frequentar a igreja aos domingos, indecente por ser mãe e não ser casada, e uma má influência para todos os que ousarem entrar em sua loja para comprar um chocolate. Apesar de mal vista, seu jeito acolhedor desperta a curiosidade de alguns habitantes, sem deixar de sofrer com o preconceito de outros.

No contraste de pensamentos entre Vianne, defensora da liberdade e dos desejos, e o Conde de Reynaud, com suas regras para manter o status quo da comunidade, muitos atos imprudentes e impensados acontecem para provarem seus pontos. Um deles foi a defesa do Conde a manutenção do casamento entre Serge e Josephine, um casamento baseado em violência doméstica, pois para Serge ele fez um favor em casar com Josephine, já que seus pais estavam do lado errado durante a Segunda Guerra Mundial, então ela deveria permanecer ao seu lado aguentando calada o que ele faz quando está embriagado. Vianne via em Josephine uma pessoa que precisava de ajuda e que não recebia por conta de a cidade vê-la como uma pessoa de maus costumes, assim sendo excluída dos círculos sociais, ficando sem oportunidade para sair da vida em que levava. Ela estende a mão a Josephine e lhe dá uma oportunidade de transformar a própria vida.

Outro momento em que fica evidente o preconceito da vila, e como os de fora são tratados, é quando os nômades chegam pelo rio Tannes. Não são bem vistos e nem bem-vindos pela comunidade, que via neles pessoas de baixa índole, sujos e imorais por viverem de acordo com as próprias regras e leis, vivendo as margens do rio ao invés de se adequarem as normas rígidas de uma cidade ou vila, pertencendo a um local fixo. Por isso, o Conde organiza um boicote a presença deles na cidade, enquanto Vianne decide fazer amizade com eles, e quem sabe vender uns chocolates. Mas os incentivos a exclusão dessas pessoas por parte do Conde resultaram em atos de ódio, fazendo cada vez mais vítimas entre os excluídos e marginalizados, que incluíam crianças, adultos e idosos.

As tentativas de Vianne em dar um novo ar a vila eram vistas pelo Conde como uma afronta, mas ainda assim foi capaz de tocar pouco a pouco algumas pessoas da comunidade. A vila de tons pasteis foi começando a ganhar cor com a presença de Vianne. Então será que todo diferente é ruim? As pessoas não têm chance de mudar? A sociedade é obrigada a viver pelo dever imposto pelo controle social? A vida precisa ser quadrada e rígida para ser tranquila?

O que vai dando cor a cidade é dar menos importância ao senso de dever e buscar o equilíbrio entre o que se precisa fazer e o que se deseja fazer. Todo excesso faz mal, seja para mais ou para menos. Os excessos mantêm preconceitos que prejudicam e machucam pessoas em todos os lugares, assim tirando a tranquilidade de muitos. A manutenção de um status quo doente gera ódio, exclusão, agressividade e dor para todos os lados, tanto para quem o tenta manter quanto para quem o tenta romper.

Então por que não buscar um meio termo, um caminho do meio, baseado no respeito mútuo e valorização das diferenças? As diferenças são enriquecedoras! O que falta para muitas pessoas serem alguém melhor é a oportunidade, alguém que estenda a mão e busque ajudar, apesar das diferenças. Investimentos precisam ser feitos de todas as partes da sociedade para que isso aconteça e mesmo nós sendo pequenas parcelas da sociedade, pequenas formigas em um mundo imenso, ainda temos a oportunidade de ser agentes de transformação e de mudança na nossa vida e na vida de alguém! Sendo como o vento que sopra em direção a mudança para uma vida tranquila, porém alegre! Busquemos ser a nossa melhor versão, aceitar as diferenças e aprender a ser tolerantes, vivendo no equilíbrio entre o dever e o desejo, assim revendo nossos conceitos e nos livrando dos pré-conceitos, como o Conde e Vianne tiveram a oportunidade de fazer ao deixarem de lado a vida por aparências.

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Sheila Francisca Machado reside em Brasília, é psicóloga clínica, especialista em psicologia clínica e especializada em avaliação psicológica, CRP 01/16880. Atende adolescentes e adultos na Clínica de Nutrição e Psicologia - CLINUP. Atua com a abordagem Análise do Comportamento.
Contato: sheila_machado_@hotmail.com
Clínica Clinupclinup.blogspot.com
Instagram@empqnasdoses

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