Dumbo: uma reflexão sobre loucura e maternidade

29 de janeiro de 2021

 


Foto: Disney/BuenaVista / Dumbo / Divulgação.

Dumbo (1941) é uma animação infantil clássica que ganhou uma releitura em live action em 2019 que extrapola a obra original e possibilita reflexão sobre diversos temas contemporâneos. A loucura é um tema que está presente tanto na animação quanto no live action, e entra em cena quando a Sra. Jumbo é rotulada de "elefante louco", após tentar proteger seu filhote de atos violentos que envolviam chacota e zombaria por ele ser um elefante de orelhas muito grandes, o que não é esperado para essa espécie. 

Os atos violentos contra o filhotinho de elefante foram gratuitos e a reação materna instintiva. O rótulo de louca é uma forma de deslegitimar o sentimento da mãe, desqualificar sua voz e seus atos, e ainda eximir o agressor da responsabilidade da agressão. 

A Sra. Jumbo é uma elefante com um filhote bebê, o que permite uma identificação com a mulher puérpera, que embala seu bebê recém-nascido para que ele possa sobreviver ao mundo. O puerpério na modernidade é visto como um momento delicado e difícil, e esse rótulo tem muito a ver com o instinto da mulher que se sobressai a diversas demandas sociais que, ao longo do tempo, foram desenhando a mulher dentro de um papel social que diverge em alguns aspectos do que o biológico dita. 

Dentro do papel social de mulher espera-se que ela performe feminilidade, gentileza, doçura, obediência e submissão. Durante o puerpério, a mulher se volta instintivamente para o filho, muitas vezes deixando de lado o papel que a sociedade espera que ela represente como mulher, e não é raro elas agirem com todos os seus recursos a fim de protegerem seus bebês. A relevância desse fato é tanta que mantém o dito popular da “mãe leoa”. 

Algumas atitudes maternas protetoras são vistas pela sociedade como maternais, cuidadosas e dignas de exaltação, o que inclusive alimenta a sociedade de mercado que cada vez mais lança novos produtos a fim de proteger os bebês. Entretanto, quando a mulher limita visitas, proíbe alguns tipos de brincadeiras, piadas ou apelidos é comum ser vista socialmente como exagerada e, caso essas ações sejam mais acaloradas, não é raro o rótulo ser o de louca. Junto com o rótulo vem a desqualificação de suas vontades e da sua voz, e os "sãos" continuam fazendo o que acreditam ser certo sem olhar ou escutar essa mãe. Caso ela faça muito barulho, utiliza-se de algum "sossega-leão" como forma de "acalmar" uma mãe que virou leoa, ou como dizem "louca". 

Talvez o leitor esteja se perguntando o que há de errado com visitas ou brincadeiras, mas nem todas as visitas entendem a dinâmica de uma casa com recém-nascido, ou mesmo a rotina desse bebê. Às vezes chegam sem avisar, para visitas longas e invadindo a privacidade do neném e da mãe. E aqui vale ressaltar que o bebê e a criança também são desprovidos de voz em nossa cultura. Seu discurso é desqualificado e ignorado socialmente desde as primeiras horas de vida. O bebê que ainda não aprendeu a falar tem no choro sua grande ferramenta de comunicação, mas essa não é tolerada e é silenciada com chupeta e mamadeiras para que fiquem bem quietinhos, principalmente para que outras pessoas além da mãe consigam ficar com ele nos braços por mais tempo. Tanto na animação quanto no live action Dumbo clama pela mãe, mas só é ouvido por um ratinho, na animação, e por duas crianças órfãs, no live action, ou seja, por seres que como ele não possuem voz na sociedade. 

Com relação às piadas e brincadeiras comumente feitas, tem desde a clássica "cara de joelho", passando por jogos que envolvem apertar, beliscar, morder partes do corpo recém-nascido ou ameaçar fazê-lo, até piadas envolvendo características individuais da criança ou família. Em resumo, situações indelicadas e violentas que nenhuma mãe quer que seu filho viva. No caso da animação, a Sra. Jumbo tem o nome do seu bebê mudado contra a sua vontade por conta de sua aparência. Pode parecer uma situação exclusiva do cinema, mas, infelizmente, não é. Muitas crianças ganham apelidos de terceiros que acabam se tornando uma espécie de "nome social". Há também as que os pais na hora de fazer o registro escolhem um nome diferente do desejado pela mãe. 

Na história de Dumbo, uma consequência do rótulo da loucura é a Sra. Jumbo ter sido trancada em uma jaula, e ser mantida afastada de seus iguais e também de seu filhote. Essa exclusão social e cárcere é uma atitude manicomial, que apesar de muitas lutas no Brasil e no mundo para que ela seja extinta ainda é presente em nossa sociedade, tanto no formato de instituições de internação, quanto por atitudes sociais que reforçam padrões manicomiais. Em contextos onde se usa o rótulo de "louca" para desqualificação materna, podemos ter a vivência de alienação parental, tentativa de afastar o filho da mãe, pedidos de revisão de guarda, e discursos para desacreditar a mãe da sua capacidade cuidadora. 

O rótulo da loucura desqualifica o discurso e torna o falante desprovido de ouvinte, salvo alguns profissionais qualificados que podem traduzir o "sem sentido". Dessa forma, o protesto é inaudível, e, por vezes, mesmo com profissionais intermediando, aquele que é rotulado continua sem voz, desprovido de seus direitos inatos de fala, sentimento, choro e expressão. 

Ao mesmo tempo que o rótulo da loucura desqualifica o "louco", ele empodera quem o rotula e quem tem sua tutela, e, se estamos falando de puérpera, outro também é empoderado com relação ao seu filho. Quem lucra com o rótulo de “mãe louca”? Aqueles que querem a guarda do seu filho. Na história do Dumbo foi o circo que lucrou financeiramente com as habilidades do bebê. E fora da tela? Quem lucra ao rotular uma mãe de louca?  

Talvez o leitor deva estar se perguntando se eu estou ignorando condições de saúde mental e sofrimento intenso que por vezes são rotuladas como loucura. Não, reconheço essas condições e sei que não é raro a vivência de algumas delas no período puerperal, mas rotulá-las como loucas não agrega, pelo contrário, destitui direitos humanos fundamentais. Saúde mental necessita de acolhimento, empatia, cuidado especializado e muito amor. E as "loucuras" criadas para silenciar vítimas de violência essas precisam de olhar crítico e mudança social. É preciso parar de responsabilizar vítimas e proteger agressores.

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Alyne Farias Moreira, brasiliense do quadradinho, mas refugiada entre a beira do Araguaia e a sombra da Serra Azul. Mãe da Cora Linda, psicóloga, CRP 18/02963, equoterapeuta, professora e palestrante. Apaixonada pelo desenvolvimento humano e por psicanálise.  
Contato: (66) 99224-9686
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