Foto: Disney / Rodgers & Hammerstein's Cinderella / Divulgação. |
Rodgers & Hammerstein's Cinderella (1997) é um filme da Disney baseado no musical da Broadway e que conta com todos os elementos básicos do clássico conto de Perrault: uma jovem feita de empregada pela madrasta, fada madrinha, abóbora que vira carruagem, sapatinho de cristal, príncipe, feitiço acabando à meia noite e felizes para sempre.
Entretanto, a escalação, que coloca atores afrodescendentes em todos os núcleos e ainda um ator de descendência asiática para o papel de príncipe, é um diferencial de outras obras do gênero, principalmente para a época em que foi lançado, pois, de modo geral, as adaptações do clássico para a telona, ou as telinhas, seja em live action ou animação, é marcada pela branquitude do elenco. Nas próximas linhas tentarei discutir a importância dessa obra para identificação, representatividade e quebra de alguns paradigmas que sustentam estruturas racistas da nossa sociedade, mas faço isso consciente das minhas limitações enquanto uma pessoa branca de classe média.
O filme conta com uma Cinderella negra, com belas madeixas trançadas e uma voz belíssima. Temos também afrodescendentes representando a rainha (mãe do príncipe), uma das irmãs de Cinderella, a fada madrinha, além de figurantes e bailarinos. Isso possibilita mais oportunidades de identificação e representatividade para quem assistiu ao filme.
Vivemos em um mundo heterogêneo, com diversidade étnica, mas é muito comum no cinema ocidental uma homogeneidade branca nos protagonistas, o que gera falta de identificação com negros, asiáticos, indígenas e outras etnias. Estamos em 2021, contudo, ainda falta representatividade étnica no cinema. Adultos e crianças merecem e precisam ter acesso a filmes com representatividade real. Essa representatividade permite a oportunidade de desnaturalizar privilégios de um grupo hegemônico, ou pelo menos o questionamento desses privilégios.
No Brasil, a maior parte da população se declara negra. Dentro do percentual de pessoas desempregadas ou em condições trabalhistas precárias, os negros também são maioria. Estamos no século 21, contudo, ainda hoje temos no Brasil jovens que trabalham em casas de família, sem reconhecimento, em condições quase ou análogas às escravas, e aprisionados em sentimentos de "dívida e gratidão" por patrões que os têm como "parte da família". Essa é a mesma realidade da Cinderella, que após a morte do pai "vive de favor" em sua própria casa, presa à "dívida de gratidão" à madrasta e à promessa feita ao pai de nunca deixar a casa e ser uma família com a madrasta e as filhas.
Cinderella está infeliz e sonha em fugir dessa realidade. Mas, como destaca sua fada madrinha: "esse é o problema da maioria das pessoas, elas sonham com as coisas ao invés de fazê-las". A arte e a cultura alimentam nossa alma e nossa criatividade, porém, também carregam preconceitos estruturais que, por vezes, moldam nosso pensar e agir. Quando assistimos repetidas vezes às princesas brancas, passamos a construir uma representação social da princesa como uma jovem branca, limitando outras etnias até de ocuparem esse lugar de fantasia. E assim muitas meninas crescem sonhando em ser Cinderella, mas sem conseguirem se imaginar nesse papel devido à falta de representatividade. Contudo, em Rodgers & Hammerstein's Cinderella (1997), há uma ampliação das possibilidades de identificação, pois a Cinderella que rompe com o padrão branco-normativo abre oportunidade para que possamos imaginar outros padrões para essa princesa tão popular ao redor do mundo.
Quando Cinderella fala para a fada madrinha que quer ir ao baile, ela escuta que a única coisa que a detém é ela mesma. Mas será?! Ela é uma órfã sonhadora que tem todos os dias seus sonhos esmagados por uma família abusiva, que por anos teve sua autoconfiança minada, e socialmente é vista como uma menina de sorte, pois a madrasta não a jogou na rua. Será que podemos dizer para uma jovem como essa que a única coisa que a detém é ela mesma? É claro que se ela conseguir ressignificar esses abusos e sofrimentos, ela vai conseguir realizar coisas "impossíveis", mas ressignificar dor é difícil, ainda mais sozinha e sem apoio.
E quando pensamos fora da esfera cinematográfica, as Cinderellas da vida real, brasileiras afrodescendentes, pobres, oprimidas por um social que lucra com suas posições servis e uma mídia que consolida isso, representando negros majoritariamente em papéis que fortalecem imaginário de exclusão e reforça estereótipos racistas. O que detêm nossas Cinderellas reais é toda a nossa estrutura social, que reforça essa posição servil, que limita oportunidades para uma parcela da população, fortalecendo e propagando uma ideia de mérito como único responsável pelo sucesso, realizações, mudanças, esquecendo-se que alguns grupos detêm mais privilégios que outros. Aí todo mundo tem parte na responsabilidade. O que temos feito para empoderar as Cinderellas espalhadas pelo mundo? Ou para mantermos nossos privilégios estamos fechando portas para impedir a Cinderella de encontrar o sapatinho de cristal?
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Alyne Farias Moreira, brasiliense do quadradinho, mas refugiada entre a beira do Araguaia e a sombra da Serra Azul. Mãe da Cora Linda, psicóloga, CRP 18/02963, equoterapeuta, professora e palestrante. Apaixonada pelo desenvolvimento humano e por psicanálise. Contato: (66) 99224-9686 Instagram: @vir_a_ser_Alyne |
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