Especial: Cinema, cultura e adolescência

12 de fevereiro de 2021

 


Foto: 10 Coisas que Eu Odeio em Você (Disney/Buena Vista) / Desenrola (Downtown Filmes) / Ela Disse, Ele Disse (Imagem Filmes) / Para Todos os Garotos que Já Amei (Netflix)

Confesso, sempre fui fã de filmes de comédia com protagonistas adolescentes e que tratam de questões da adolescência. Lembro que o filme que me marcou no início da adolescência, e que continua até hoje sendo um dos meus favoritos, é “10 Coisas que eu Odeio em Você” (1999). Durante minha adolescência assistir vários, “Ela é Demais” (1999), “Teenagers - As Apimentadas” (2001), “Meninas Malvadas” (2004), a trilogia de filmes “American Pie” (1999, 2001 e 2003), entre tantos outros. Mas, algo me incomodava: o que eu via em tela não era tão semelhante com o que eu vivia na vida real. A escola Americana não era tão parecida com o que eu vivia na escola brasileira. Estava ali diante dos meus olhos um choque de culturas! As imagens dos filmes americanos criavam algumas expectativas sobre a vida na adolescência que na prática não existiam na vivência brasileira, e não digo tanto pelas situações exageradas que são tecidas para tentar tornar o filme interessante, mas por detalhes cotidianos ali representados que são diferentes no Brasil.

Apenas do choque de cultura, os assuntos tratados ali nos filmes americanos se parecia com os conflitos que eu vivia enquanto adolescente em algum grau, então cumpriam certa função. Não era comum encontrar no cinema brasileiro muitos filmes sobre o assunto, tanto que ainda lembro da primeira vez que assisti “As Melhores Coisas do Mundo” (2010). Já não era adolescente, mas lembro que me fez recordar da minha adolescência e de alguma forma me sentir representada naquela visão de mundo. Senti novamente em um lugar comum ao assistir “Desenrola” (2011). Aqueles adolescentes ali pareciam mais reais para mim. Não sentia esse choque de culturas. Fui emocionada assistir no cinema o filme "Confissões de Adolescente" (2013), pela nostalgia de ver com nova roupagem os personagens que eu via na série de mesmo nome quando eu era mais nova! E assim, fui tendo a oportunidade de, a medida que o cinema nacional expandia seus limites, encontrar filmes que me faziam me sentir representada em relação as vivências da adolescência.

O mundo mudou, a cultura se transformou e a sociedade se desconstruiu. Vemos hoje surgindo uma nova onda de filmes adolescentes, mas agora com o mercado americano e o mercado brasileiro produzindo em ritmo semelhante, em grande parte por conta dos serviços de streaming. De um lado temos “Para Todos os Garotos que já Amei” (2018), “Barraca do Beijo” (2018), “Sierra Burgess é uma Loser” (2018), “Dançarina Imperfeita” (2020), do outro temos “Fala Sério, Mãe!” (2017), “Tudo por um Pop Star” (2018), “Ela Disse, Ele Disse” (2019), “Modo Avião” (2020). E o que será que muda e o que será que permanece o mesmo? O que tem de importante falar sobre esse assunto? Calma que já digo.

A adolescência é uma fase de autodescoberta, o momento em que o sujeito começa a tentar entender e traçar a própria identidade. Uma parte dos atos do adolescente tem como objetivo se auto afirmar e tentar encontrar seu lugar no mundo. Os filmes acabam se tornando ferramentas de referência. Neles muitos jovens buscam encontrar algum personagem para se identificar, as vezes imitam o que veem, e isso de alguma forma influência na vivência das experiências dessa fase. Um ponto em comum que se tem nos filmes, independentemente do país de origem, é as questões tratadas: os conflitos interpessoais, os relacionamentos amorosos, os problemas familiares, as inseguranças, a busca por uma identidade, por se entender e entender o mundo. Não é à toa que até hoje “Clube dos Cinco” (1985) é um filme lembrado e cultuado!

Contudo, a forma que as situações que esses questionamentos acontecem podem variar de cultura para cultura. Temos na cultura americana uma escola dividia em grupos de acordo com a função do aluno na escola, e por mais que os filmes atuais mostrem que esses grupos não são tão caricatos quanto se mostrava nos filmes antigos, ainda vemos o grupo dos atletas, o grupo das líderes de torcida, o grupo dos estudiosos, dos membros da banda, e por aí vai. Na cultura brasileira, por mais que hajam alunos mais populares que outros, os grupos são formados mais por afinidades e/ou por tempo de convivência, e é comum ter uma comunicação entre todos, não sendo considerado estranho pessoas de um grupo conversar ou ajudar pessoas de outro. Um segundo ponto que fica bem clara a diferença é no sistema escolar, em termos de horas passadas na escola, organização de grade horária, anos passados no ensino médio e vestibular.

Dessa forma, lidar com os conflitos é visto diferentemente nas culturas, o que se reflete nas narrativas dos filmes. Por mais que possa ter o apoio das amizades, nos filmes americanos vemos uma cultura do tentar resolver sozinho, de não poder depender muito do demais, a visão de ser individual dentro de um coletivo. Já nos filmes brasileiros vemos uma cultura do "tamo junto", você precisa resolver algo, mas não está sozinho. Todos de alguma forma podem contribuir para chegar na solução do seu problema, família, escola, amigos, ou seja, é a visão do ser social, um ser que compõe um todo que se apoia. Há um coletivo social e o indivíduo faz parte dele.

Sim, independente da cultura tem as questões da competitividade, não se sentir bom o bastante, não saber se está pronto para alguma experiência. É normal muitas vezes não saber o que falar ou como falar, os não ditos, os exagerados e os mal-entendidos. Afinal, ser adolescente é ser cobrado como adulto e tratado como "criança". É tudo ser muito importante, ao mesmo tempo em que nada importa tanto. A vivência da adolescência é a vivência do conflito. Por isso é importante a produção nacional de filmes sobre essa fase/voltados para essa fase. Os filmes nacionais dão possibilidade aos jovens de refletir sobre seu papel no mundo a partir de uma perspectiva cultural e social próxima da sua própria realidade. Enquanto que os filmes internacionais vão fazer isso a partir da visão cultural do país de origem, podendo expandir as visões de mundo de quem os assiste.

O cinema e as mídias visuais têm um papel na construção do sujeito, podendo influenciar em sua visão de mundo e em como lida com os conflitos que encontra pela vida. Ter a oportunidade de ter disponível filmes que retratam a própria cultura podem fazer diferença para aqueles que estão na fase da adolescência. Lembrando que filmes de outras nacionalidades também são bem-vindo, já que permitem conhecer outras culturas, entender como que elas dão espaço para a construção do ser e mostram que há conflitos da juventude que existem em qualquer lugar, a diferença é o olhar que cada cultura tem sobre eles.

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Sheila Francisca Machado reside em Brasília, é psicóloga clínica, especialista em psicologia clínica e especializada em avaliação psicológica, CRP 01/16880. Atende adolescentes e adultos na Clínica de Nutrição e Psicologia - CLINUP. Atua com a abordagem Análise do Comportamento.
Contato: sheila_machado_@hotmail.com
Clínica Clinupclinup.blogspot.com
Instagram@empqnasdoses

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