A Voz do Silêncio – o que o bullying e a cultura do cancelado tem a ver com você

26 de março de 2021

 

Foto: Kyoto Animation / A Voz do Silêncio / Divulgação.

Em A Voz do Silêncio (Koe no Katachi, 2016), Shoya Ishida se sente culpado pelo bullying que praticou quando criança com Shouko Nishimiya, uma aluna surda que foi transferida para sua escola no 6º ano do primário. Na época em que ela entrou na classe, Shoya e seus amigos tiveram dificuldade em aceitar as diferenças da colega e o tratamento que a escola dava por conta da deficiência auditiva. Com isso, alguns colegas de classe faziam brincadeiras, falavam mal de Shouko e a excluíam dos grupos de amizade. Só que Shoya ia além, com agressões mais diretas como jogar fora o caderno que ela usava para se comunicar, a imitava em frente a classe, quebrou os aparelhos auditivos que ela tentou usar e chegou a assustá-la algumas vezes. Um comportamento que muitos colegas desaprovavam, mas tinham medo de falar algo.

Após vários dias sofrendo bullying, a mãe de Shouko decide retirá-la da escola e a escola pede para o responsável pelas agressões se manifeste. Os amigos que antes estão rindo e provocando Shouko junto com Shoya decidem deixar a culpa apenas com ele, e ele assume a culpa apenas para si, começando a achar que não tem o direito de ser feliz e de ter amigos por conta do que ele causou a Shouko. O cenário se inverteu e o autor do bullying se tornou a vítima de bullying na escola, sofrendo agressões de seus amigos próximos semelhantes às que fez com Shouko.

Agora, com seus 17 anos, não consegue olhar as pessoas nos olhos, se isola e pensa que não vale mais a pena viver. Quando sua mãe descobre seus planos, fica brava e conversa com ele na tentativa de que ele desista da ideia de suicídio e tente se manter firme para continuar vivendo. Consumido pela culpa, Shoya tem um objetivo ainda para ser cumprido: falar com Shouko novamente e tentar se redimir pelo que ele fez no passado. O que acaba sendo difícil, já que, justamente pela culpa, vive sozinho, não tem amigos e não se importa com os boatos que correm em sua escola, pois acha que não merece o direito de ser feliz. Sua vida é mergulhada na culpa, na baixa autoestima e em sua depressão. A oportunidade que esperava para se redimir acontece ao encontrar com Shouko novamente no local em que ia para aprender a língua dos sinais.

Souko ainda estava com medo de Shoya, mas deu uma chance para ele mostrar que mudou. Assim, ela e sua irmã Yuzuru aos poucos foram fazendo amizade com Shoya. Uma amizade que aos poucos permitiu que cada um abrisse o próprio horizonte, mas ambos ainda tinham os traumas e receios deixados pelo bullying para superar dentro de si. Tudo o que passaram deixou marca nos dois. E superar as marcas juntos os reaproximou de pessoas queridas e fazer novas amizades.

Bullying são atos de violência e assédio que tem por objetivo intimidar uma pessoa que não tenha sido aceita por um grupo. O termo surgiu em princípio voltado para o ambiente escolar, mas com o mundo cada vez mais tecnológico, o bullying começou a ser visto como não sendo restrito ao ambiente escolar. Um exemplo disso é o cyberbullying, que seria o assédio e a intimidação por meios digitais. Essas ações acabam deixando marcar nos sujeitos, tanto em quem pratica quanto em quem sofre o bullying. Em alguns casos, o autor do bullying pode ter sido vítima de bullying no passado e vê no outro uma oportunidade de descontar uma frustração que guarda dentro de si.

O bullying é um ato de violência que se tem criado estratégias para ser resolvida nas escolas. Como todo ato de violência, precisa de um alvo e pessoas para atacar. Essa é a ponte que mostra a semelhança entre o bullying e a cultura do cancelamento. Em ambos a finalidade é excluir uma pessoa de um grupo ou do convívio, sendo que que na cultura do cancelamento não há necessariamente atos violentos. A cultura do cancelamento surge como uma forma de excluir alguém por um erro cometido ou por algo que não se concorda. Não somos obrigados a compactuar com a opinião ou um ato que julguemos errado ou que seja diferente do nosso. Deixar de seguir nas redes sociais ou para de consumir o conteúdo de uma pessoa que não concordamos em si não é um problema. A questão é a campanha para cancelar uma pessoa através de atitudes violentas e assédio. Se não concorda com algo, basta não curti, não comentar e não ofender. 

Quem passa pela situação do cancelamento recebendo ameaças, sendo rechaçado, xingado e ofendido, sofre atos violentos, tais quais ou até mais do que aqueles que levaram ao seu cancelamento. O grupo que cancela se utilizando de violência, apenas reproduz o ato agressor, se tornando um agressor também. Se você agride uma pessoa por ela ter agredido, não estaria você se tornando aquele que você critica? E como será que se sente a pessoa agredida? Será que não começaria a desenvolver sintomas de culpa, baixa autoestima e perda do gosto pela vida? Será que o agressor se sentiria bem ao ter consciência da situação em que deixou a pessoa agredida? Ou por estar se escondendo em uma falsa sensação de anonimato na internet, acha que pode falar ou fazer o que quiser sem se sentir parte do problema?

No caso de Shoya, as pessoas que praticaram bullying com ele foram as mesmas que estavam juntas com ele praticando o bullying contra Shouko. De certa forma, Shoya foi cancelado por seus amigos e colegas de sala. Ter a noção do impacto que ele causou na vida de muitas pessoas com seus atos o fez repensar suas atitudes e decidiu voltar suas reações agressivas contra si mesmo. O preço que se paga por perpetuar atos violentos pode ser muito caro e pesado. Não é necessário passar pela violência para se ter a oportunidade de repensar os próprios atos. Mas usar de violência para isso, seja física, moral, psicológica, material ou qualquer que seja, deixam marcas que precisam de atenção para serem tratadas.

Se você já passou por qualquer dessas situações discutidas aqui, procure um profissional capacitado, que assim você terá a oportunidade de ressignificar suas vivências. Ressignificá-las tem um papel importante para seu bem-estar e sua saúde. Silenciar a voz do trauma é adoecedor. Pôr para fora com auxílio da psicoterapia, se permitindo entender as marcas e sentimentos que suas vivências deixaram, pode ser libertador e dar um novo sentido para aquilo que hoje incomoda, mas que ressignificado pode deixar de incomodar e te dar forças para ser feliz.

____________________

Sheila Francisca Machado reside em Brasília, é psicóloga clínica, especialista em psicologia clínica e especializada em avaliação psicológica, CRP 01/16880. Atende adolescentes e adultos na Clínica de Nutrição e Psicologia - CLINUP. Atua com a abordagem Análise do Comportamento.
Contato: sheila_machado_@hotmail.com
Clínica Clinupclinup.blogspot.com
Instagram@empqnasdoses

Nenhum comentário:

Postar um comentário