Foto: Walt Disney / Enrolados / Divulgação |
Enrolados (2010) é a adaptação da Disney do clássico Rapunzel e, assim como o clássico, pode ser pensada por diversos ângulos. Mas neste artigo gostaria de voltar a atenção para o relacionamento de mãe e filha da mama Gothel e da Rapunzel. Mama Gothel criou Rapunzel desde bebê e a guardou em uma torre, segundo ela para mantê-la sã e salva dos perigos do mundo. Quando Rapunzel mostrava interesse em sair da torre protetora, a mama listava o quanto o mundo era assustador e em seguida já mostrava a jovem que ela poderia protegê-la, que ficando ali não teria perigo. A mama também se vitimizava quanto ao cuidado que ela teve para com a filha, dizendo que ser abandonada e morrer sozinha deveria ser o retorno merecido por tanta dedicação e carinho. Gothel também desvalorizava a Rapunzel psiquicamente, socialmente e fisicamente, com adjetivos depreciativos como "tonta", "desleixada" e "gorducha". Por fim, ela dizia a Rapunzel que a amava e que ela não devia esquecer, mas sim obedecer, pois, "sua mãe sabe mais".
Essa superproteção da mama Gothel é também sinal de um relacionamento lesivo. Existe um desequilíbrio na relação das personagens. Há uma tentativa da mama de exercer poder sobre a Rapunzel e esse poder é velado pelo discurso de cuidado materno. Entretanto, o real interesse da mama em manter a Rapunzel trancada na torre é drenar o poder dos seus cabelos e continuar se mantendo bela e jovem. Ou seja, uma busca por benefício próprio as custas da filha.
Esse tipo de maternidade não é exclusividade da ficção e é nomeada em algumas abordagens da psicologia como narcísica, em outras como tóxica, só para citar os rótulos mais populares. Se libertar de uma maternidade tóxica não é fácil e é muito doloroso. É possível pensar sobre o tempo que Rapunzel ficou naquela torre até ter coragem para sair, foram anos desejando e esperando a "vida começar", até que ela decidiu fugir. O relacionamento disfuncional entre as personagens é crucial na decisão de fuga de Rapunzel. Inclusive, antes de sair da torre ela confessa, com certo pesar, que gostaria que a mãe a deixasse ir, mostrando que existe por parte da personagem desejo de que a mãe consentisse sua saída.
Ser objeto de amor, ou interesse, de alguém como a mama Gothel é muito difícil e sofrido, pois nesse tipo de relacionamento o outro é depreciado, humilhado, infantilizado para mantê-lo preso no relacionamento. Esse sofrimento pode ser tão intenso e incapacitante que é possível a vítima se manter refém dessa relação e estagnada na vida, vivendo a sombra de seu algoz. No caso, Rapunzel não aguentava mais esperar "a vida começar" e decidiu fugir, mas mama Gothel a encontra e tenta aprisiona-la novamente. Contudo, quanto mais tempo a moça ficava livre, mais ela gostava de estar fora da torre e não desejava voltar para aquela vida de confinamento.
Diante do impasse de interesses entre mãe e filha, mama Gothel decide matar aquele que estava desviando a filha. Na tentativa de salvar José, Rapunzel troca sua vida pela dele, se a mama Gothel a deixasse curar José ela nunca mais tentaria fugir de novo. Entretanto, na hora que Rapunzel vai curar José, o rapaz corta seus cabelos e toda a beleza e juventude que mama Gothel havia conseguido pela magia das longas madeixas lhe é retirada.
A mágica dos cabelos de Rapunzel só existe na ficção, mas o corte de seu cabelo simboliza a ruptura dela com a mãe. Se essa história não fosse um conto de fadas, Rapunzel só conseguiria ter relacionamentos, além do de mãe e filha, se o relacionamento dela e da mãe sofresse cortes, limites. A quantidade e a profundidade desses cortes dependem muito da resiliência dos envolvidos, pois é muito comum que haja retaliação por parte de quem está sofrendo limitação do poder. Dessa forma, para se manter em um relacionamento com alguém como a mama Gothel e conseguir ter uma vida é imprescindível ser resiliente e ter rede de apoio, inclusive de um profissional capacitado, que auxiliará no processo de autoconhecimento, o qual é fundamental para que a vítima consiga separar o que é dela das crenças depreciativas usadas pelo algoz para mantê-la atada a ele, e também para conseguir lidar com as retaliações consequentes dos limites colocados.
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Alyne Farias Moreira, brasiliense do quadradinho, mas refugiada entre a beira do Araguaia e a sombra da Serra Azul. Mãe da Cora Linda, psicóloga, CRP 18/02963, equoterapeuta, professora e palestrante. Apaixonada pelo desenvolvimento humano e por psicanálise.
Contato: (66) 99224-9686 Instagram: @vir_a_ser_Alyne
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